Esta é a primeira tradução que posto aqui, espero tornar isso um exercício frequente. Começo com um poeta que admiro muito e cujo destino (apesar de romantizado) me parece a melhor encarnação de "vida em tradução". Friedrich Hölderlin (1770-1843) é um dos poetas líricos mais importantes da tradição em língua alemã. Considerado "escolarmente" como romântico, Hölderlin tem uma obra que transcende muitas classificações e que tem uma força expressiva (e impressiva) que não por acaso inspirou muitos pensadores e poetas. Dentre os alemães, talvez o mais famoso seja o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que leu a poesia hölderliniana como Geschick ou habilidade, perícia - algo que, acho, é necessário para se superar a secura técnica e tecnológica da atualidade. Algo como um geistliches Geschick, uma habilidade mental, criativa e rebelde. Talvez a abordagem mais famosa de Heidegger sobre Hölderlin seja seu ciclo de palestras de 1942 intitulado "Hölderlins Hymne 'Der Ister'" ("O hino de Hölderlin 'O Istro'"), no qual o filósofo encara a poesia de Hölderlin em meio ao horror da II Guerra Mundial e destaca a relação íntima do romântico com a antiguidade grega, promovendo uma leitura extensa e intensa da tradução (que Hölderlin fez) de Antígona, de Sófocles (o curso rendeu ainda inspiração para um filme, intitulado The Ister, de 2004).
A poesia de Hölderlin é fortemente marcada por um ideário classicista, devido a essa relação intensa e profunda do poeta com a poesia grega clássica, da qual traduziu sobretudo Sófocles (a já mencionada Antígona e Édipo rei) e Píndaro e que influenciou seu estilo hínico. A profundidade com que Hölderlin mergulhou tradutoriamente no emaranhado das línguas, das entre-línguas, é por alguns tida como a causa do seu enlouquecimento (diagnosticou-se nele o que veio a se chamar depois Dementia precox e depois esquizofrenia), o que lhe rendeu o enclausuramento, em 1806, na famosa Torre de Tubinga, onde permaneceu até sua morte em 1843. Pouco antes de ser enclausurado, em 1804, Hölderlin havia publicado as traduções de Sófocles mencionadas acima, e sofreu o escárnio de seus colegas românticos (Voss, Schelling) e classicistas (Goethe, Schiller). Haroldo de Campos, em ímpeto paidêumico, trata e retrata, em seu texto "A palavra vermelha de Hölderlin", esse escárnio e esse parco reconhecimento da argúcia poético-tradutória de Hölderlin, um louvor mais que merecido ainda que tão tardio. Vale leituras (de Haroldo, sempre).
De um poeta que viveu tão intensamente a tradução (e cuja poesia se fez em tradução) apresento uma proposta minha de tradução de "Hälfte des Lebens", de 1804, escrito pouco antes de Hölderlin começar a sua segunda "metade da vida", enclausurado esquizofrênico na Torre. Em breve tentarei me enredar com "Der Ister", belamente traduzido por Paulo Quintela mas que, sacumé, eu tenho que traduzir também.
Metade da vida
Com peras douradas pende
e cheia de rosas silvestres
a terra lago adentro,
ó formosos cisnes,
e ébrios de beijos,
embebei a cabeça
na água sacrossóbria.
Ai de mim! onde vou ver
flores no inverno, e onde
o brilho do Sol,
e sombras da Terra?
Os muros estão postos
mudos e frios, ao vento
tilintam as flâmulas.
Hälfte des Lebens
Mit gelben Birnen hänget
Und voll mit wilden Rosen
Das Land in den See,
Ihr holden Schwäne,
Und trunken von Küssen
Tunkt ihr das Haupt
Ins heilignüchterne Wasser.
Weh mir, wo nehm’ ich, wenn
Es Winter ist, die Blumen, und wo
Den Sonnenschein,
Und Schatten der Erde?
Die Mauern stehn
Sprachlos und kalt, im Winde
Klirren die Fahnen.
Mit gelben Birnen hänget
Und voll mit wilden Rosen
Das Land in den See,
Ihr holden Schwäne,
Und trunken von Küssen
Tunkt ihr das Haupt
Ins heilignüchterne Wasser.
Weh mir, wo nehm’ ich, wenn
Es Winter ist, die Blumen, und wo
Den Sonnenschein,
Und Schatten der Erde?
Die Mauern stehn
Sprachlos und kalt, im Winde
Klirren die Fahnen.